Bispado

1844 a 1875

Dom Antônio Ferreira Viçoso

7º Bispo de Mariana

Venerável

Logo após a morte de Dom Frei José, foi nomeado bispo de Mariana, o Pe. Diogo Antônio Feijó, clérigo de notável carreira política, tendo inclusive exercido a regência do Império em 1837. Entretanto, Pe. Feijó recusa a nomeação e, em seu lugar, é eleito o Pe. Carlos Pereira Freire de Moura que falece antes de sua posse, fato que faria prolongar a vacância na Diocese por mais alguns anos, completando nove em 1844, quando seria nomeado aquele que modificaria para sempre a história da Diocese, o inesquecível Dom Viçoso.

Nasceu Antônio Ferreira Viçoso em 13 de maio de 1787, em Peniche, Portugal, no seio de uma família cristã. Aos nove anos de idade, teve sua educação confiada aos padres carmelitas de Olhalvo, onde concluiu sua alfabetização e iniciou-se no latim. Aos vinte anos, formou-se em teologia e, em 1818, aos trinta, ordenou-se padre lazarista. Durante um ano, lecionou filosofia em Évora e, em 1819, seria enviado ao Brasil, como missionário.

Em fins de novembro, aportou no Brasil em companhia do Pe. Leandro Rabello Peixoto, inicialmente para trabalhar na catequese dos índios do Mato Grosso. Entretanto, ao chegar, a dupla teve sua missão modificada. Com a morte do Irmão Lourenço do Caraça, o rei desejava encontrar novos líderes para estabelecer na serra uma residência de missionários e um colégio para meninos.

Quando chegou ao Caraça, junto com outros irmãos lazaristas, o Pe. Viçoso empenhou-se em missões por todas as Minas para ensinar o evangelho aos pobres. Nessa época, fundaram o prestigioso Colégio do Caraça, onde o futuro Dom Viçoso atua como dedicado professor sem, no entanto, abandonar suas peregrinações missionárias.

Durante quinze anos, dirigiu o seminário de Jacuecanga, no Rio de Janeiro, onde foi, segundo palavras de Dom Silvério, o mesmo padre dedicado e carinhoso da época do Caraça: Não só reitor e mestre, mas Pai, mãe e escravo de todos.[i]

Dedicou-se de corpo e alma à causa do seminário de Jacuecanga, mas nunca escondeu o desejo de retornar ao Caraça. Quando finalmente o fez, recebeu outra honrosa missão. Fora nomeado Superior Maior dos Lazaristas no Brasil.

O então padre Viçoso dedicou-se com zelo missionário à questão da escravatura. Nunca se conformou com a crueldade com que eram tratados os homens, as mulheres e as crianças negras que, ao serem arrancados de suas terras, deixavam para trás suas esperanças para serem atirados às deprimentes senzalas e forçados a uma rotina de trabalho árduo, quase sempre sob condições desumanas. Em todas as suas andanças por Minas, fez questão de tratar os negros como seres humanos e filhos de Deus, conduta ainda rara na época e que fazia dele um verdadeiro santo aos olhos da população negra.

Foi durante o século XIX que a Igreja passou por um dos mais difíceis períodos de sua história. No cerne das revoluções burguesas do final desse último século, estava a idéia da separação entre a Igreja e o Estado. Foi um período de transição, repleto de desafios e provações para os papas. Diante do avanço do Protestantismo e Galicanismo, doutrina originária da França que defendia a independência das igrejas nacionais em relação ao poder central do papa, a Igreja precisava recuperar terreno e era desejo dos líderes clericais de então retomar as orientações do Concílio de Trento que reafirmara, séculos antes, a autoridade papal e instituíra as regras para a formação do clero. É com esse objetivo que as novas missões chegam ao Brasil. A posição da Coroa e do novo Império, por este tempo, mostrou-se dúbia. Pois, se por um lado, o poder Real via nas novas missões uma garantia de povoamento organizado no interior do Brasil e, em razão disso, as incentivava, por outro lado deixava aberto o caminho para a proliferação da maçonaria e, em busca de sua própria sobrevivência, se laicizava a cada dia.

No Brasil, desde a expulsão dos jesuítas e principalmente durante o período da regência, o clero tornou-se disperso e distante das orientações de Roma. Esse ambiente produziu alguns clérigos descompromissados com os dogmas da fé católica e permitiu o avanço da maçonaria e do pensamento liberal que, de certa forma, minava os esforços da Igreja em restituir a sua doutrina e a disciplina clerical no país. É nesse clima conturbado que Dom Viçoso chega ao Brasil e são estas as principais razões do enorme zelo com que o futuro bispo dedicou-se à formação dos sacerdotes no Caraça, em Jacuecanga e Campo Belo, no Triângulo Mineiro onde também dirigiu um seminário. Foi devido a esse persistente empenho, com o qual se ocupou quase a vida inteira, que Dom Viçoso entraria para a história como o grande reformador do clero brasileiro.

Particularmente em Minas, devido ao grande período de vacância desde a morte de Dom Frei José, a situação se mostrava ainda mais calamitosa. Em nome da busca da liberdade e da transformação política, a Regência havia incentivado a indisciplina eclesiástica; a existência de padres ligados à maçonaria era comum e os fiéis encontravam-se abandonados e carentes de liderança espiritual. Quando foi escolhido bispo de Mariana, Dom Viçoso relutou em aceitar; sua humildade o fazia julgar-se pequeno para tão importante missão. Mas, em suas meditações e orações iluminadas pelo Espírito Santo, assentiu que sua recusa mais problemas traria à província e àquelas almas, por ora, abandonadas. Assim sendo, aceita sua nomeação e, em junho de 1844, entra solenemente na Catedral da Sé. Sua posse fora marcada por uma das mais grandiosas festas do período. Naquela época, os mineiros já conheciam bem as virtudes do novo Bispo. Afinal aquele era um missionário que havia de fato fomentado esperança naquele solo. Suas andanças missionárias haviam se tornado célebres e os clérigos formados pelos lazaristas eram um sopro de alento para um clero melhor àquela altura tão comprometido.

No dia seguinte à sua posse, viveu uma das mais emocionantes passagens de sua vida. Uma imensa multidão de escravos se dirigiu à frente de sua residência, cada um deles trazendo em suas mãos um feixe de lenha ornado com flores; presentes humildes, mas que comoveram o coração daquele fiel amigo dos negros. Juntou-se à multidão e abençoou um a um, distribuiu pequenas estampas de Nossa Senhora e mereceu deles sensíveis demonstrações de deferência. Em todo o período de seu bispado, procurou escrever e falar contra a escravidão. São suas as palavras:

Libertai esses pobres negros. Eles são homens como nós. Têm a alma imortal, às vezes mais pura e santa que a dos seus amos e senhores. Crime horroroso e vil! Na opressão da raça negra está o triste resumo de toda a miséria e desgraça nacional.[ii]

A partir de sua sagração como bispo de Mariana, sua obra reformadora se espalhou por todo Império. Transformou o Seminário de Mariana no mais importante do Brasil e se empenhou pessoalmente na formação dos novos sacerdotes. Para aqueles clérigos antigos, estragados pelas incongruências daqueles tempos, agiu como um santo. Estendeu a mão aos que se desviaram, mas realmente desejavam se redimir e agiu para afastar aqueles que se mostraram indignos. Tornou-se extremamente cuidadoso com as ordenações, seguindo fielmente o que havia sido estabelecido pelo Concílio de Trento, permitia que se ordenassem apenas aqueles que de fato possuíam vocação e merecimento. Sagrou cinco bispos que dariam continuidade à sua obra e difundiriam os princípios que defendia. O primeiro deles foi o primeiro bispo de Diamantina, Dom João Antônio dos Santos em 1864, que fora seu discípulo, súdito, cônego de sua catedral, reitor do seminário e grande amigo. A Diocese de Diamantina, primeira a ser desmembrada de Mariana, fora criada dez anos antes pelas mãos de Dom Viçoso.

Em 1853, Dom Viçoso entrega a direção do Seminário de Mariana aos seus irmãos lazaristas e, no ano seguinte, por ocasião de um terrível surto de varíola em Mariana, todos os alunos e atividades do Seminário são transferidos para o Caraça.

Missionário incansável, Dom Viçoso realizou visitas pastorais desde o início de seu pastoreio. Todo ano, após a época das chuvas, as reiniciava. Em 1845, deu início à primeira visita geral a diocese, que iria acabar somente em 1851, quando reiniciaria outra viagem que encerraria somente em 1868. Na região de Abaeté, fez uma apaixonada defesa de um condenado a morte. Suas palavras chegaram a sensibilizar o subdelegado local que acabou por se tornar agradecido ao Santo Bispo, por ter-lhe poupado do terrível pecado de matar um inocente.

Outro célebre episódio de suas visitas pastorais aconteceu em São Paulo do Muriaé (atual Muriaé). Depois de abençoada visita, quando já estava para regressar, lhe surge uma mulher doente, Maria Cândida de Jesus. A pobre mulher mal conseguia manter-se de pé; tinha o corpo tomado por feridas e asquerosos tumores. Sensibilizado, o Bispo abençoa-a e repete as palavras de Jesus Cristo: “Tenha fé, minha filha! Vai ficar boa”. Não demorou para que ela se levantasse curada por Deus, por intercessão de Dom Viçoso.[iii]

Sua obra social enquanto bispo foi grandiosa. Misericordioso, jamais se conformou com a situação de miséria em que vivia boa parte da população mineira. Agora, Minas Gerais não era mais a mesma de um século atrás, repleta de oportunidades e de possibilidades de ascensão social. Pelo contrário, a mineração tornara-se atividade restrita a grandes investimentos e as propriedades rurais concentravam-se nas mãos de poucos, provocando um desnível social cada vez maior e mais triste. Especialmente, as crianças o comoviam.

Desde que tomamos sobre nossos ombros o peso do episcopado, tem sido nosso assíduo cuidado a educação da mocidade, não só da que se destina ao estado eclesiástico, mas também da mocidade desvalida, que mendiga pelas ruas, sem pais conhecidos e etc.[iv]

Sensibilizado por essas crianças que perambulavam pela cidade em situação de miséria, Dom Viçoso comprou duas casas para servirem de orfanatos, um para as meninas e outro para os meninos. Criou também um hospital para acolher os desamparados. Obras que foram possíveis graças às suas eloqüentes palavras pela caridade e desprendimento, capazes de tocar os mais privilegiados e impulsionar os atos de solidariedade em toda a província.

Outro marco de seu episcopado foi a criação do Colégio da Providência de Mariana, dedicado à educação das meninas. Não desanimou diante das grandes dificuldades que enfrentou no seio daquela sociedade machista, onde se achava certo educar os meninos, mas não as meninas. Suas palavras e ações em defesa das meninas junto à população, ao longo dos anos, surtiram efeito e foi possível a Dom Viçoso, ao fim de sua vida, ver mais de uma centena de meninas estudando no colégio.

Foi por suas mãos que o então garoto Silvério Gomes Pimenta, seu afilhado de crisma, chegou ao Seminário de Mariana em 1855. Desde o início dos estudos do garoto, viu nele virtudes inestimáveis ao exercício sacerdotal. Era como se o sábio e bondoso bispo pudesse antever o futuro daquele que seria o primeiro Arcebispo de Mariana.

Já idoso e doente, voltou ao seu amado Santuário no Caraça para despedir-se daquele lugar onde havia sido tão feliz. Àquela altura, o clero brasileiro já voltara aos seus melhores dias e o trabalho realizado por Dom Viçoso ajudara, de forma decisiva, a pavimentar novamente a boa tradição clerical mineira e brasileira.

Faleceu no dia 07 de julho de 1875, aos oitenta e oito anos, trinta e um deles como bispo de Mariana.

Em sua homenagem ficaram batizadas, em Minas Gerais, as cidades de Dom Viçoso e Viçosa.

Em 1875, o então padre Silvério Gomes Pimenta escreve a brilhante biografia “A Vida de Dom Antônio Ferreira Viçoso”, com o coração agradecido de afilhado ao seu protetor padrinho. Em 1965, por ocasião do 90º aniversário de sua morte, foi lançado o livro “Dom Viçoso, Apóstolo de Minas”, pelo também lazarista e então bispo coadjutor da Diocese de Luz (MG), Dom Belchior Joaquim da Silva Neto.

Ainda em vida, Dom Viçoso já possuía fama de santo entre os mineiros e, a partir de sua morte, várias foram as graças atribuídas à sua intercessão. Em 1916, o então Arcebispo de Mariana, Dom Silvério, com todas as formalidades canônicas, instala o Tribunal Eclesiástico para instaurar o processo da canonização de Dom Viçoso.

O Sr. Arcebispo Dom Helvécio não deu seqüência ao empenho de Dom Silvério e o processo foi retomado somente por Dom Oscar de Oliveira em 1964. Em 1986 lhe foi atribuído o título de Servo de Deus.

No governo de Dom Luciano, o exame criterioso das virtudes praticadas por Dom Viçoso em grau elevado (Positio Super Virtutibus) recebeu franca aprovação da Santa Sé, que agora aguarda a apresentação de um fato extraordinário (milagre) atribuído à intercessão desse santo para beatificá-lo.

Seus restos mortais encontram-se na cripta da basílica. Em seu jazigo na catedral da Sé, em Mariana, lê-se: “Aqui descansa o Ex.mo e Rev.mo Senhor Dom Antônio Ferreira Viçoso, filho da Congregação da Missão, bispo da Diocese de Mariana, nascido em 13 de maio de 1787. Viveu como ensinou e morreu como viveu. E vive como morreu, isto é, com e no Senhor”.

Fonte: SANTIAGO, Marcelo Moreira. et al. Igreja de Mariana. 261 anos de história. 100 anos como Arquidiocese: 1906-2006. Mariana: Gráfica Dom Viçoso, 2007, p. 71-80.

[i] PIMENTA, Dom Silvério Gomes. Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso, Bispo de Mariana, Conde da Conceição. 3.ed. Mariana: Tipografia Arquiepiscopal, 1876.

[ii] SILVA NETO,Belchior J. da. Dom Viçoso, apóstolo de Minas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1965. p. 71.

[iii] Ibidem. p.81.

[iv] Ibidem.

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