Eleito primeiro bispo de Mariana em 1745, àquela altura, Dom Frei Manoel da Cruz havia completado quase uma década à frente da Diocese do Maranhão, cargo que ocupou com esmero e dedicação, atributos que certamente não lhe faltaram também nos dezesseis anos em que esteve como Pontífice Maior da recém-instituída primeira Diocese das Minas Gerais. Não esmoreceu diante do gigantesco desafio que era viajar a cavalo por quatro mil quilômetros de São Luís a Mariana. Foi uma verdadeira odisséia pelo interior do Brasil, tendo o Prelado sido obrigado a enfrentar inúmeras situações perigosas e enfermidades. Ao fim de quatorze meses, chegaria à nova cidade episcopal e outros vários meses seriam necessários para que restabelecesse-lhe por completo a saúde, abalada pelas intempéries várias que lhe cruzaram o caminho.
Em dezembro de 1748, solenemente tomou posse como bispo de Mariana e foi efusivamente saudado pela população. Os registros históricos descrevem as manifestações em sua homenagem como comoventes procissões de fé e as festas de comemoração como grandiosas em pompa extraordinária, fazendo jus à importância do ocorrido e à notável opulência em que naqueles idos vivia Mariana. Sua administração tornou-se memorável com relevantes realizações de ordem espiritual e temporal.
No campo espiritual, suas ações foram muito importantes para a população de Minas. Seu incessante trabalho pela adoção da devoção ao Santíssimo Coração de Jesus que, em 1749, ainda era uma prática relativamente nova. Para tanto, teve o bispo que enfrentar, com galhardia, alguns mal informados cônegos que se opuseram à instituição da nova devoção. Tais opositores utilizaram-se até mesmo de vis e tristes recursos para enfrentar a disposição do santo Bispo. Chegaram a apear a sacrossanta imagem do Coração de Jesus do altar e a esconderem no cômodo de despejo da Catedral Episcopal. Entretanto, o Bispo, mais uma vez, não recuaria diante das dificuldades. Mandou fazer nova imagem e é importante que se dê nota ao brio do Vigário Geral Pe. José dos Santos, responsável por expor ao culto, a primeira imagem. Em vibrante festa, em 1752, Dom Manoel pessoalmente presidiu à entronização do Coração de Jesus no altar de São José da Catedral da Sé. Meses depois, o venerável bispo, homem experiente e acostumado a desafios, derramaria comoventes lágrimas ao encontrar coberta de pó e imundícies a primeira imagem. Enviou-a para a capela de Passagem, a pedido da própria população local. A partir daqueles acontecimentos, a edificante devoção se instalaria perene e altaneira nos corações da capitania e se tornaria uma das mais importantes constituintes da índole essencialmente religiosa das futuras gerações mineiras.
Buscou, com igual galhardia, intensificar, em todas as paróquias da diocese por onde passava, o exercício da meditação, agindo assim de acordo com a orientação do Sumo Pontífice Bento XIV. Mas também a esta iniciativa do Bispo ocorreriam resistências, às quais mais uma vez este incansável Pastor soube vencer. Em 1755, todas as matrizes da Diocese praticavam a oração mental, antes ou após as missas.
Após a visita geral a toda Diocese, feita logo após a sua posse, tomou a sábia decisão de desmembrar paróquias e criar outras tantas, tornando a Igreja cada vez mais próxima de seus fiéis. Empenhou-se, com notória seriedade, para manter, em toda a sua pureza, a disciplina eclesiástica, não se furtando a coibir os abusos e reparar os equívocos do cabido[i].
Pela disciplina, proibiu não somente as músicas profanas nas igrejas como também os clérigos de andarem à noite pelas ruas e celebrarem as missas de chinelos ou sem samarra.
Foi também o responsável pela elaboração do regimento dos Vigários da Vara[ii] que perdurou por mais de oitenta anos. Trabalho considerado completo e em perfeita harmonia com as leis e costumes da época. Em suas Pastorais (nome dado aos comunicados oficiais de um bispo aos diocesanos), Dom Frei Manoel mostrou-se zeloso pela conduta moral de seus fiéis, reprovando sempre os pecados e os crimes civis comuns à época, como o contrabando de ouro e os furtos. Quando foi alçada à condição de cidade episcopal, a Catedral ainda encontrava-se inacabada. Foi o bispo Dom Frei Manoel da Cruz que lhe assentou as janelas, rebocou e caiou todo o edifício. É apontado pelo Cônego Raimundo Trindade como o grande responsável pela riqueza das obras e pinturas da catedral. Também acrescentou e terminou a capela-mor, fez o coro e a sacristia dos cônegos. Foi em seu período que Dom João V presenteou a diocese com o valioso “Órgão Arp Schnitger”, assentado por aquele que viria a se tornar o maior dos artistas americanos e tendo sido boa parte de suas obras realizadas durante o período do primeiro episcopado: Manoel Francisco Lisboa, mundialmente conhecido como o Aleijadinho. É dele o risco do pórtico de entrada e três peças lhe são ali atribuídas: o anjo do alto e os dois evangelistas embaixo.
Visionário, foi o bispo que liderou e inspirou o processo de urbanização de Mariana e a ordenação graciosa de suas ruas e edifícios, executada principalmente pelo brigadeiro José Fernandes Pinto de Alpoim e por José Pereira Arouca, os grandes construtores da cidade. Foi também o Bispo o responsável direto pelo início da construção de templos notáveis como São Pedro, São Francisco, Carmo e Rosário, em Mariana, e a maioria das grandiosas Igrejas de São João del-Rei, Sabará, Diamantina, Tiradentes e Ouro Preto.
Outras famosas obras de seu governo são o Santuário de Congonhas e o Seminário de Mariana. Esta última mereceu sua melhor atenção.
Primeira casa de instrução de Minas Gerais, o Seminário foi inaugurado em 1750 e foi de providencial importância para o desenvolvimento cultural dos homens das Minas nos anos seguintes. Inicialmente confiado aos jesuítas, o Seminário formou inúmeros clérigos e deu instrução a outros tantos sem vocação sacerdotal. A capela anexa em honra à Nossa Senhora da Boa Morte é obra de Arouca e guarda em seu interior preciosas pinturas de Antônio Martins da Silveira.
Foi em 1750 que o ódio à companhia de Jesus, por parte da Corte portuguesa, tornara-se mais aceso, muito em função das Missões em Colônia do Sacramento e do seu imenso prestígio na América. Ódio que se avolumou até explodir na expulsão dos jesuítas de Portugal e de suas colônias, em 1759, comandada pelo Marquês de Pombal, o então primeiro-ministro do rei e notório déspota. Tal fato causou profunda tristeza a Dom Frei Manoel que se viu obrigado a dispensar o dedicado Padre Nogueira, seu amigo e reitor do Seminário.
Dom Frei Manoel da Cruz, amado pelos mineiros e maranhenses, faleceu em 03 de janeiro de 1764, deixando seu nome marcado para sempre nos corações e mentes da posteridade.
Fonte: SANTIAGO, Marcelo Moreira. et al. Igreja de Mariana. 261 anos de história. 100 anos como Arquidiocese: 1906-2006. Mariana: Gráfica Dom Viçoso, 2007, p. 47-52.
[i] Coletivo que designa o conjunto, o grêmio dos cônegos. Atuava como um senado, um conselho a serviço do Bispo. Adereço das Igrejas Catedrais, ornamentava o culto litúrgico e era obrigado à recitação coletiva do breviário ou horas canônicas, em momentos estabelecidos no dia. (RODRIGUES, Monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues. Cadernos históricos do arquivo eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Mariana: Dom Viçoso, 2005. In: . Os dois relatórios decenais de Dom Antônio Ferreira Viçoso. v. 4, p. 94.
[ii] Ou Vigário Forâneo. Pároco ou sacerdote distinguido pelo Bispo com uma autoridade maior sobre seus pares, dentro de uma região, chamada de forania, câmara ou vara eclesiástica. Substitui aí eventualmente o bispo. (RODRIGUES, Monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues. Cadernos históricos do arquivo eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Mariana: Dom Viçoso, 2005. In: Os dois relatórios decenais de Dom Antônio Ferreira Viçoso. v. 4, p. 121).